O MUNDO DAS
FORMAS AUTOLUMINOSAS
E, no momento da morte, para os budistas tibetanos, há um
encontro frente a frente com a luz clara, branca, da consciência do Buda. Se
não houver esse reconhecimento, a alma começa a afundar cada vez mais em
profunda e hipnótica ilusão, e finalmente num novo nascimento.
Na metáfora em que a luz se transforma em consciência, temos
a importante idéia de que “ver com o olho da mente” pode abranger sua forma
própria de lucidez, em lugar de ser sempre a ilusão ou delírio, como ocorre
quando nossos sonhos mascaram a “realidade”.
Nesta parte, examinarei a relação metafórica entre a luz
interior e a luz exterior. Tradicionalmente, o mundo da imaginação é o mundo
astral estelar, ou do espírito. É chamado em certos textos yogues de mundo das
“formas auto-luminosas”. (Talvez seja por isso que a consciência da luz do dia
perde-se tão facilmente no mundo dos sonhos. A luz da consciência, que busca
iluminar os objetos de nossos pensamentos, bruxuleia quando diante de formas
auto luminosas.)
Nas Yoga-Sutras de Patanjali encontramos uma antiga
formulação da natureza ambivalente da imaginação: “A natureza psíquica,
assumindo a cor do Visionário e das coisas vistas, leva à percepção de todos os
objetos.”7 A
tarefa do iogue, através de sua disciplina, é manter imóvel Proteu — “a
natureza psíquica”, o organismo vivo da imaginação.
O poeta Blake procurou levar a imaginação de volta às suas
origens divinas:
O eterno Corpo
do Homem é A Imaginação, ou seja, o próprio Deus O Corpo Divino: Jesus: somos
seus Membros.
Ele se
manifesta em suas Obras de Arte (Na Eternidade Tudo é Visão).9
Blake achava que o artista era o sacerdote da imaginação e
que estava mais perto da verdadeira visão espiritual do que o filósofo.
Lembramos a sua figura mitológica pessoal para a vida criativa, Los, o fogoso artista ferreiro com sua
raiva e paixão, o adversário de Urizen
— personificação da “tua razão” (ver lhe Four Zoas).
Também Coleridge, como já disse, reconhecia uma forma
primária de imaginação, não baseada em objetos do mundo exterior — função
meramente de espelho — mas no poder criativo e visionário da própria vida. O poeta ou artista criador é o iogue do
Ocidente, que estabelece relação com essa função mais profunda da imaginação.
Ao contrário do iogue, ele não busca banir toda a ilusão para encontrar a
verdade única. Ele procura, mais como o xamã, as verdades nas ilusões, e
partilha as visões.
A alma ou imaginação não se ocupa da simples matéria ou do
espírito puro; usando uma expressão abrangente, ela uma atividade
psicossomática, que, como um arco-íris, liga extremos harmoniosamente e produz
um “novo nível de ser”, um “terceiro”, que nada mais é do que a própria alma.
A alma cria-se a si
mesma, imaginando-se, e existe apenas enquanto imagina. A verdade e a realidade
da alma são criadas e existem no que é criado. A imaginação é uma ocorrência
autônoma, auto-originadora, simples presenciar, o “alguma coisa” que, como
diriam os budistas, é “apenas assim”. No sentido rigoroso da palavra, é uma
experiência colorida.
Hillman, que inspirou boa parte do pensamento de Avens,
sugeriu, em seu clássico Revisioning Psychology, que a psique tem uma
necessidade fundamental de ver através de si mesma, de tornar transparentes as
idéias e imagens que sempre parecem reais (a raiz latina de “real” é res;
literalmente, “coisa”) quando nos ocorrem.
A palavra grega eidos é a raiz tanto de “idéia” (um
pensamento por meio do qual vemos) quanto de “imagem” (eidolon, “forma”). “A alma parece sofrer quando seu olho interior
está obstruído”, escreveu Hillman.
[E] o aprendizado psicológico, ou psicologização, parece
representar o desejo de luz da alma, como a mariposa busca a chama. A psique
quer encontrar-se vendo através; e gosta ainda mais de ser iluminada vendo através de si mesma, como se o simples ato de
ver através tornasse a alma transparente.’4
“Quando as perturbações da natureza psíquica foram todas acalmadas,
então a consciência, como um cristal puro, assume
a cor daquilo em que repousa, seja quem percebe, a
percepção, ou a coisa percebida.”8 Esse princípio aparentemente simples é a
raiz da metáfora para todas as práticas de meditação do Oriente, o caminho para
a visão verdadeira, o autoconhecimento, até mesmo para a consciência cósmica.
Haverá alguma outra de profundidade e eficácia equivalentes na tradição
espiritual do Ocidente?
Em geral, a visão nos
dá as mais ricas metáforas para a consciência e nos apresenta um mundo
caracterizado por superfícies, contornos, texturas, cores e outras coisas.
Também traz transparência, dimensionalidade e profundidade —
bem como opostos, sob a forma de opacidade, obscuridade e sombra. Acima de
tudo, a visão como uma metáfora para a consciência se reforça com as características
de seu próprio meio iluminante, a luz.
A fala cotidiana está cheia de metáforas visionárias: ‘Agora
eu vejo”, “Poderia lançar um pouco de luz sobre isto?” e “Comecei a ver que...
E nos referimos às mais completas percepções da consciência humana como cheias
de luz: iluminações. A alma do místico assemelha-se ao olho pela sua capacidade
de perceber a iluminação viva da experiência espiritual. A alma vê através da
maya, a superficie ilusória das coisas.
As imagens da imaginação nem sempre são ‘imaginárias” ou
inverídicas, mas sim “imaginais” , apresentando verdades de um tipo diferente,
interior. A psique, ou alma, é a imaginação. 5 Jung, porém, disse isso com
muita elegância:
A mitologema
protéica e o bruxuleante símbolo expressam os processos da psique de maneira
muito mais incisiva, e, em última análise, muito mais claramente do que o mais
claro dos conceitos; pois o símbolo não só transmite uma visualização do
processo, como também — e talvez isto tenha a mesma importância — provoca uma
reexperiência daquela penumbra que só podemos aprender a compreender pela
empatia inofensiva, mas que é dispersada por uma claridade excessiva.6
A “claridade excessiva” de que fala Jung é a luz da
consciência diurna que espera contornos nítidos nas coisas — e nas idéias; isso
é muito diferente do mundo protéico, poético, e não obstante simbolicamente
rico, do sonho.
Os pensadores
neoplatônicos do Renascimento identificaram, de fato, a alma imaginal com a
figura grega da divindade marinha Proteu, que podia tomar a forma de todas as
coisas, homem, besta ou monstro. Contudo, ele só assumia a própria forma —
diz-nos a lenda — e dava uma bênção, se fosse apanhado e preso. Da mesma forma,
a anima (“alma” em latim) é mostrada com frequência nos velhos contos de fada
como uma ondina, ou espírito das águas, que só retoma sua verdadeira forma se
capturada e presa.
Visualizemos isto: em sua próxima aventura como herói, você
prende o mágico Proteu (nossa metáfora neoplatônica para a alma), mas se o
prender com muita força, pode não conseguir ver nunca as suas transformações
lendárias e espetaculares.
Relaxe um pouco a pressão para fazer uma espécie de “viagem
de mistério mágica” (e aumente a pressão para segurá-lo, quando ele ameaçar
arrastar você totalmente, como nas lendas, nas costas de um dragão ou de um
tigre). Com uma combinação de controle mental e permissividade mental, a
imaginação mítica é levada a revelar seu funcionamento interno. É essa a
essência do que Jung chamou de função transcendente, a qual delineei em The Shaman’s
Doorway, como o mais elevado estágio (o quinto) de engajamento místico.
Anos depois, mas ainda na mesma tradição, Yeats disse:
Acredito que
as artes estão na iminência de tomar sobre seus ombros o peso que caiu dos
ombros dos sacerdotes, e levar-nos de volta à nossa viagem, enchendo nosso
pensamento com as essências das coisas, e não com as coisas. Devemos, mais uma
vez, colocar a destilação da alquimia em lugar das análises da química, e de outras
ciências; e há pessoas que estão buscando o alambique perfeito, para que
nenhuma gota de prata ou ouro venha a escapar.’11
Campbell disse que o artista criador de hoje herdou (e
tornou ainda mais colorido) o manto do sacerdote. A arte, a literatura e
a cinematografia de que Campbell falava eram as mesmas que
Joyce fez Steven Dedalus descobrir: a visão impregnada de
mito, a suspensão estética que leva a mente a uma nova compreensão da sua
própria profundidade.’2
Em seu livro penetrante e sintetizador, Imaginal Body, Avens fala da colorida panóplia que a psicologia do
arquétipo foi buscar nas imagens da alma:
desde a psyche (literalmente, “borboleta”) dos
gregos até Jung e a cauda pavonis (a “cauda do pavão”) dos alquimistas, e os
simbolos multipetalados, a rosa (Ocidente) e o lótus (Oriente). Talvez a representação
mais translúcida da alma (Avens atribui a Owen Barfield a imagem) seja o
arco-íris:
Quando tentamos compreender um sonho, estamos fazendo idéias
sobre imagens. E quando sonhamos, vemos as imagens carregadas de nossas idéias,
como as associações sempre revelam. Será que a vida — e o crescimento —
essencial da alma se encontram em nossa capacidade de auto-refletir:
idéia/imagem/ idéia?
(Dou exemplos mais
detalhados de como isso funciona adiante.) Identificamos, certamente, a
auto-reflexão com um nível mais elevado de consciência. A capacidade de ver
dentro de nós mesmos e rir do que encontramos ali parece-nos atraente.
A visão através, como o humor, resiste a todas as conclusões
fixas e prévias, a toda rigidez e opacidade de pensamento, e estimula o que é
simbólico ou analógico, e transparente.
Toda vez que adotamos uma nova idéia ou um novo sistema de
idéias, começamos a ver as coisas de novas maneiras, como se as idéias fossem
olhos. Depois de algumas horas de estudo do sistema popular Análise
Transacional, por exemplo, podemos passar a ver nosso comportamento, ou o
comportamento dos outros, como variações sobre o tema de três personagens
constantes: pai, filho e adulto;
e a percepção nos
mostrará, na verdade, coisas de cuja existência sabíamos. Mais miticamente (e
de modo mais colorido), poderíamos identificar a sombra tenebrosa que paira
atrás de nós; aquela coisa semelhante a uni espírito, a anima; e a máscara, a
persona. É da natureza de qualquer forma de mito, presente na mente ou atuando
sob a consciência, formar nossa experiência dentro do seu molde.
A imaginação é a estrela no homem...O segredo é ver através da imaginação.
Há um intencional
duplo sentido dessa frase, porque seu tema é tanto o USO da imaginação para
ver, como ver através de suas imagens. Há indícios de que, nas fases
evolucionárias iniciais de desenvolvimento da vida mental, a imaginação e a
percepção eram uma mesma faculdade.
Percebemos o mundo
através de um sistema de imagens interiores nitidamente desenvolvido no
decorrer dos anos, para imitar a realidade de certas maneiras. Não obstante,
nossa percepção nunca está livre da imaginação (apercepção, ou a hipótese
projetiva em psicologia).
IMAGINAÇÃO E VISÃO
Podemos separar a imaginação da percepção colocando uma
pessoa numa câmara de privação sensorial, onde não recebe nenhum insumo do
mundo exterior. Depois de algum tempo, a imaginação começa a descontrolar-se,
criando alucinações (percepções desligadas da realidade exterior e delírios
(idéias pertencentes a um sistema de crenças desligado da realidade exterior).2
Não será talvez a
nossa gabada “orientação para a realidade” simplesmente a imaginação que se
atrelou aos acontecimentos externos, e deles se vale? A imaginação é uma
faculdade que imita o mundo, de modo que possamos imaginar cores, formas,
pessoas, lugares e fatos.
Outras modalidades de
sentidos pertencem também à imaginação: podemos ouvir música mental, por vezes
de um tipo que não conseguimos afastar; vozes e conversas reconstituídas; e
experimentar gostos, odores mentais, bem como a textura de um objeto que
tenhamos tocado.
A imaginação pode imitar a vida tal como a conhecemos, ou
pode preparar-nos para acontecimentos prováveis que ainda não se desenrolaram.
Todas essas funções parecem razoáveis e necessárias à nossa existência. Mas há
também o lado mais sombrio e descontrolado da imaginação; somos capazes de
imaginar coisas que nunca vimos nem ouvimos na realidade externa. As mitologias
estão cheias de animais míticos que nunca caminharam pela Terra, e os seres
humanos mentem e enlouquecem, em grande parte por serem capazes de imaginação
criativa.3
A mente, dizem os místicos orientais, é uma boa serva, mas
um mau amo. O mesmo se aplica à imaginação mítica, porque ela não só nos
permite modelar o mundo de maneira exata, como também fabricar fantasiosamente,
e imaginar descontroladamente, coisas que não podem ou não devem nunca ocorrer.
Assim, sofremos com frequência
ao ver que nossos planos cuidadosamente imaginados se frustraram, ou que
“interpretamos mal”, grosseiramente, a realidade — no mito, isso é por vezes
representado por um conselheiro mentiroso ou um adivinho corrupto.
Podemos, nessas
ocasiões descobrir que a imaginação reagia na verdade à dinâmica interior da
personalidade, e não a uma aproximação) do mundo exterior. A psicologia
torna-se confusa em nossas percepções.
Nossa maravilhosa faculdade de criar mundos, portanto, pode
agir como um gerador de facsimiles da
realidade ou (de acordo com suas leis internas) um gerador de delírios. Como a
onisciência, a imaginação tem liberdade de “conhecer” ou de modelar-se sobre
qualquer coisa no universo.
Mas, ao contrário da
onisciência divina, a imaginação humana nunca sabe até que ponto o modelo que
cria é exato. Nossa visão humana parece estar envolvida numa “nuvem de desconhecimento”,
Precisamos, portanto, aprender a nova arte da visão”. Stephen Larsen
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