A Tecelã
A
Tecelã é uma imagem arquetípica freqüentemente representada na arte e na
literatura, especialmente nos contos de fadas e mitos, através de figuras
femininas – deusas, fadas, mulheres…. Pretendo aqui apresentar alguns relatos
que exemplificam a correlação entre o processo de criação, como os trabalhos com
fios e a literatura, e o processo de individuação feminina.
Desde
os primórdios da civilização, podemos encontrar nos artefatos, como cestos e
esteiras, trançados com fibras de folhas e cipós, as primeiras formas de
tecelagem, talvez inspirados nas teias de aranhas e nos ninhos dos
pássaros.
Considera-se
que o trabalho feminino de preservação e manutenção da vida, da produção de
artefatos de cerâmica e cestaria (ligada à função de nutrição), e dos primeiros
tipos de roupa (ligada à proteção do corpo), foi um fator determinante na
transformação do Homem natural num ser cultural.
As
atividades femininas de tecelagem, fiação e bordado sempre puderam ser
acompanhadas pela expressão espontânea de desejos, fantasias e lembranças, de
passagem de tradições e memórias, de brincadeiras, risos e lamentos. Em muitas
sociedades, levou a consolidar um espaço de encontro de experiências,
solidariedade e cumplicidade. Espaço de cantos e narrativas. Nos momentos
críticos da vida feminina, como o casamento e a gravidez, o enxoval bordado e
tricotado pela família e amigas (hábito atualmente em desuso nas grandes
cidades), se constitui num verdadeiro rito de passagem, evocando a imagem das
Deusas Tecelãs, Senhoras do Destino, presentes em diferentes culturas.
Fiação
e tecelagem na mitologia e nos contos de fadas
Para
os homens das sociedades tradicionais, todas as atividades humanas e todos os
artefatos têm um modelo mítico e foram ensinados pelas divindades. Esta atitude
religiosa eleva e dignifica o trabalho humano, pois ao criar, segundo Eliade, o
homem repete a cosmogonia.
A
criatividade humana é, portanto, um reflexo do dom divino. Assim, por mais
habilidoso que seja, o ser humano não deve pretender comparar-se à divindade. A
confecção de tapetes, no Oriente, pode exemplificar essa atitude de humildade em
relação à criatividade. Diz-se que os tapeceiros cometem sempre um erro,
deliberadamente, porque a perfeição é um atributo divino.
Em
muitos mitos de origem, a criação do universo resulta de atividades técnicas,
como modelar a argila, talhar a madeira ou tecer. A tecelagem aparece com um
símbolo recorrente da criação, tanto do universo como da vida humana. O próprio
Cosmos, segundo Eliade, é concebido como um tecido, como uma enorme rede. “No
Cosmos, como na vida humana, tudo está ligado através de uma textura invisível.
[...] Certas divindades são as mestras desses ‘fios’ que [...] constituem uma
vasta ‘amarração’ cósmica.” (ELIADE, 1991:112)
Por
ser a tecelagem uma atividade basicamente feminina, quando a criação do mundo
através dessa atividade é atribuída a um deus, ele compartilha com uma deusa da
natureza a autoria da obra. O filósofo grego Ferekydes apresenta o mundo como um
imenso pharos (manto) tecido por Zeus (deus do céu) e Ctônia (deusa da terra) e
estendido sobre um carvalho, contendo toda a natureza. O mundo como um tecido
aparece, na tradição hindu, na concepção do véu de Maya, deusa do mundo das
aparências.
O
mistério primordial de tecer e fiar tem sido projetado sobre a Grande Mãe, que,
como o Grande Feminino que abrange toda a natureza, é a primeira forma de
divindade, precedendo às representações masculinas. É Senhora do Tempo, e
conseqüentemente, do Destino. Governa o crescimento e o tempo cíclico, a
alternância dia-noite, a mudança das estações e os ciclos de menstruação e
gravidez das mulheres. Como a Grande Fiandeira ou como uma tríade lunar, fia e
trama não só a vida humana, mas também o destino do mundo.
Na
Grécia, as Tecelãs do Destino são as Moîras. Segundo Hesíodo, são filhas da
deusa primordial Noite (Nix, nascida do Caos), assim como as Erínias e as
Queres. Numa segunda versão, são consideradas filhas de Zeus e Têmis.
Inicialmente uma força primordial, “impessoal e inflexível, a Moîra é a projeção
de uma lei que nem mesmo os deuses podem transgredir sem colocar em perigo a
ordem universal.” (BRANDÃO,1991,vol.1:230-1) Mas após as epopéias homéricas,
passa a ser representada como uma tríade, personificando o destino individual, a
parte que cabe a cada um: Cloto (a que fia) segura o fuso e puxa o fio da vida;
Láquesis (a sorteadora) enrola o fio e sorteia o nome de quem vai morrer;
Átropos (a inflexível), corta o fio da vida.
Em
Roma, as Parcas, deusas fiandeiras que originalmente presidiam ao nascimento,
passaram a ser identificadas com as Moîras. Também eram três: Nona, Décima e
Morta e presidiam respectivamente ao nascimento, casamento e morte.
O
número de três, nove ou mais raramente, doze, é interpretado de diversas
maneiras, se relacionando a etapas temporais, como começo-meio-fim,
passado-presente-futuro, nascimento-vida-morte. Na mitologia nórdica, a deusa
tríplice do destino é representada pelas Nornas, Urth, Weryhandi e Skuld, as
tecelãs que fiam perto do poço de Urd, entre as raízes da Yggdrasil, a Árvore do
Mundo. Na literatura inglesa, aparecem como o nome de Weird Sisters (Irmãs
Destino).
No
Egito, a deusa Net ou Neith, conhecida no Ocidente como Deusa Primordial e
Onipotente, uma das deusas mais difundidas e antigas, era “homenageada com
procissões à luz de tochas e com mistérios, como deusa da magia e da tecelagem,
aquela que não nasceu, mas gerou a si mesma.” (NEUMANN, 1996:194)
Como
todos os arquétipos, a figura da Grande Mãe, como Fiandeira do Destino, se
apresenta tanto sob o seu aspecto luminoso e benevolente como sob o seu aspecto
sombrio, terrível. Na mitologia germânica, as Valquírias, em número de doze,
encarnam o aspecto terrível da Fiandeira do Destino. Elas cantam, enquanto
tecem, num tear espectral, a morte dos guerreiros no campo de batalhas, tendo o
sangue como matéria–prima.
Em
várias culturas, a criadora cósmica, divindade dedicada à fiação e à tecelagem,
é representada pela aranha. Como epifania lunar, a aranha evoca, pela
fragilidade de sua teia, uma realidade de aparência ilusória, enganadora. Sendo
Senhora do Destino, tem função divinatória. Em algumas crenças, tem o papel de
intercessora, fazendo a ligação com o plano celeste, ligando criatura e criador.
Entre os navajos, a Mulher Aranha ou Mulher Mutante é a responsável pela
manutenção do universo, fiando e tecendo continuamente a vida. Nessa cultura, as
aranhas nunca são mortas, pois seria uma ofensa às Avós ou antepassadas.
A
ligação entre a aranha e a divindade tecelã está presente também, na mitologia
grega, na história de Aracne, a mortal que desafiou a deusa Atená. Sob o epíteto
de Ergáne, “Obreira”, Atená era patrona de diferentes técnicas, entre elas a
ourivesaria e os trabalhos femininos de fiação, tecelagem e bordado. Nas festas
das Kalkeîa (festas dos trabalhadores em metais) as “Obreiras” de Atená, assim
como as meninas denominadas Arréforas, iniciavam a confecção da túnica sagrada,
que seria oferecida, num rito solene, no encerramento de sua festa mais
importante, as Panatenéias. O tempo decorrido entre essas duas festas era de
nove meses, o que insinua uma correlação entre a criação do tecido e a
gestação.
Nos
contos de fadas encontramos freqüentemente o tema e o simbolismo da fiação e da
tecelagem, como nas histórias Os seis cisnes e A bela adormecida. Neste, as
fadas que comparecem ao batizado da criança reportam às Queres, irmãs das Moîras
(às vezes confundidas com essas), que presidiam aos ritos de nascimento na
Grécia antiga.
As
fadas têm, entre os seus atributos, o dom da tecelagem de tecidos mágicos, de
invisibilidade, do destino. Uma lenda européia fala sobre as fadas protetoras
dos bosques que teciam tecidos maravilhosos. Para algum indiscreto que as
surpreendesse à noite, quando iam se banhar, o tecido transformava-se em
mortalha. Mas se um homem tinha a felicidade de agradá-las, elas lhe davam um
fio mágico para que não se perdesse na floresta.
Percebemos
nessa lenda resquícios do mito de Ariadne em sua função de guia, que permite a
saída do labirinto / bosque, símbolo do inconsciente. Aqui, fica bem evidente o
duplo caráter benévolo / maligno dessas entidades, herdeiras diretas das
fiandeiras míticas.
Platão
utilizou, para representar o mundo, um símbolo ligado à fiação: o fuso, cujo
movimento uniforme induz à rotação do conjunto cósmico. Segundo o Timeu, a deusa
Nêmesis está sentada no centro do cosmo cujo eixo “gira em torno do seu útero
como uma roca.”( FRANZ, 2003:129).
O
tear pode simbolizar uma entidade que mantém a ordem cósmica, e sua produção, o
fio da vida. Na tradição islâmica, o tear é símbolo da estrutura e do movimento
do universo. Nas tradições populares, também se observam ritos que comparam o
tecer ao criar vida. Na África do Norte, nas regiões montanhosas, em qualquer
choupana humilde há um tear simples: dois rolos de madeira sustentados por dois
montantes. O rolo de cima é o rolo do céu e o de baixo, o rolo da terra. Quando
o trabalho de tecelagem está pronto, os fios que o prendem são cortados,
enquanto se pronuncia a mesma bênção feita pelas parteiras, ao cortar o cordão
umbilical dos recém-nascidos.
Matéria
prima da tecelagem, o fio, e por extensão os nós e laços, estão sempre presentes
nos mitos e superstições e são utilizados na medicina popular, nos ritos, nas
feitiçarias e como amuletos. Sendo ambivalentes, como todos os símbolos, os nós
podem tanto provocar como evitar e curar as doenças, impedir ou facilitar o
parto, trazer ou afastar a morte. Em algumas culturas, o homem não deve usar
nenhum nó nos momentos críticos: nascimento, casamento e morte.
Outro
símbolo que se interliga ao do fio da vida é o do labirinto. “O labirinto é
concebido , às vezes, como um nó que deve ser desatado”.(ELIADE, 1991:114) “Em
todos os lugares, o objetivo do homem é libertar-se das ‘amarras’: a iniciação
mística do labirinto [...] corresponde à iniciação filosófica, metafísica, cuja
intenção é rasgar o véu da ignorância e libertar a alma das correntes da
existência” (ELIADE, 1991:115)
Fiar,
tecer, narrar, criar
“Às
mulheres não foi dado durante séculos escrever. Elas traçavam sinais de criação
usando linhas enfiadas em finos orifícios, em teares, manipulando pequenos
instrumentos de fabricação caseira. Com isso, transfiguravam o mundo, escrevendo
signos que substituíam as palavras.”(ALMEIDA, 2006)
No
mito e na arte, a tecelagem pode aparecer como uma forma de narrativa. Em
culturas de diversos lugares e épocas, os painéis e tapeçarias são, não somente
ornamentos, mas também documentos, traduzindo, em imagens tecidas, fatos
históricos, mitológicos ou cenas da vida cotidiana.
No
mito de Aracne, o que suscita a ira da deusa Atená, além da arrogância daquela
mortal, é o tema de sua tapeçaria, a narrativa das aventuras amorosas de Zeus.
Atená castiga a sua rival fazendo com que ela se arrependa e de tão culpada, se
enforque. Mas por piedade ou para que ela pagasse eternamente pela sua
arrogância, Atená a transforma numa aranha.
Outro
mito grego exemplifica a tecelagem como narrativa. É a história de Filomena,
raptada e violada por seu cunhado Tereus. Ele lhe corta a língua para impedir
que o delate e a tranca numa torre. Mesmo prisioneira, a moça consegue tecer sua
história e faz com que a tapeçaria chegue às mãos de sua irmã que, compreendendo
a mensagem, consegue encontrá-la e buscar justiça.
Ovídio
narra, nas Metamorfoses, a história das filhas de Mínias, que eram devotas de
Minerva (Atená) e que se recusam a participar dos cultos orgiásticos. Durante os
festivais de Baco (Dioniso), continuam a tecer, enquanto contam histórias para
se entreter e aliviar o trabalho pesado. Dessa forma, usam as atividades
paralelas da tecelagem e da narrativa como uma forma de resistência, em defesa
de sua liberdade de culto e opinião.
No
simbolismo de algumas palavras, podemos observar a analogia entre as atividades
de fiar e tecer e a narrativa. Nos Upanixades, a palavra sutra, que designa o
fio que liga todos os seres, o mundo terreno e o espiritual, significa também os
textos búdicos. Na Índia, shruti e smriti tanto significam urdidura e trama
quanto os frutos das faculdades intuitiva e discursiva. Em chinês, o caractere
composto de mi (fio grosso) e de king (curso d’água subterrâneo) designa tanto a
urdidura do tecido quanto os livros essenciais; wei é ao mesmo tempo o
comentário desses livros e a trama.
Em
nosso idioma, também utilizamos, como vocabulário literário, termos que remetem
ao ofício da tecelagem, como trama, enredo, texto, fio da narrativa. Ana Maria
Machado utiliza esse simbolismo para descrever seus sentimentos durante o
processo de criação: “Quando estou escrevendo alguma obra de ficção mais
complexa, sempre fico assim, me sentindo muito ligada a tudo que está se criando
na natureza em volta de mim. Além disso, a noção de que existe uma estrutura
subjacente, um projeto inconsciente segundo o qual se ordena a criação, é uma
velha obsessão de quem escreve. Nem chega a haver novidade alguma em associar
essa força regente a elementos de tecelagem e tapeçaria.” (MACHADO, 2006)
Criação
e individuação
Jung
apontou, ao longo de sua obra, a importância das atividades expressivas para a
objetivação das imagens oriundas do inconsciente (pessoal e coletivo). Para ele,
os símbolos concretizados pelas imagens pintadas, desenhadas, esculpidas ou
representadas de qualquer forma material, representavam a síntese entre a
consciência e o inconsciente. E atribuía às mãos uma certa “autonomia”, pois
segundo suas palavras, “há pessoas que nada vêem ou escutam dentro de si, mas
suas mãos são capazes de dar expressão concreta aos conteúdos do inconsciente
.”(JUNG, 1982:171) Por isso, ele valorizava o fazer criativo tanto no seu
processo de individuação como no de seus pacientes.
Criar
pode ser prazeroso, mas o ato da criação, assim como a gestação da idéia ou
sentimento pode trazer dor e sofrimento. Mesmo quando esteticamente belas,
nossas produções podem denunciar os aspectos mais sombrios de nossa alma.
Para
criar, é preciso ter coragem, principalmente para destruir o que já é conhecido
e organizado, para buscar novas configurações. No entanto, depois e enquanto
fazemos um trabalho criativo, podemos, além de vivenciar o prazer e as
dificuldades na sua realização, nos tornar mais conscientes de nosso
funcionamento psíquico.
Quando
não é utilizada adequadamente, a energia psíquica disponível para o
desenvolvimento da consciência, para o processo de individuação, para a criação,
pode se tornar veículo de sofrimento e destruição.
Na
lenda irlandesa da Aveleira (DICTA E FRANÇOISE,1983: 154) _ que apresenta
elementos semelhantes aos dos mitos de Aracne e de Ariadne _ o fio que simboliza
o produto da atividade criativa, do investimento da energia psíquica, se
transforma em instrumento de auto-destruição. Conta essa lenda que uma fada,
guardiã de um tesouro escondido num bosque sagrado, apaixonou-se por um príncipe
que nele se aventurou, entregando-lhe um fio mágico para que não se perdesse. Em
troca, deveria se casar com ela.. Ele conseguiu executar sua tarefa com êxito,
mas alegando que não poderia ter filhos com uma ninfa dos bosques, recusou-se a
desposá-la. Magoada, ela se enforcou num arbusto que passou a dar frutos de
ouro.
Quando
a criatividade é utilizada de forma positiva pode ser, além de fonte de prazer,
veículo de saúde. “Bordar e narrar têm um caráter curativo, ordenador. Ao
bordar, ao contar e reinventar um novo traçado para a sua própria história é
possível mudar esta história, reinventar um novo desenho.”(ALMEIDA, 2006)
O
espaço analítico pode ser simbolizado pelo espaço de criação, da fiação e
tecelagem e narrativa de memórias, onde a matéria–prima é a própria vida, sendo
tecida e re-tecida dia-a-dia. Espaço de transformação dos modelos herdados em
concepções inéditas e únicas.
Comentando
a visita que fez ao Museu Freud, Ana Maria Machado diz como “foi comovente
descobrir um tear montado no escritório de sua filha Anna, entre o divã e os
livros. Os fios da narrativa que cura se teciam nesse ambiente, no alvorecer da
presença feminina na psicanálise.” (MACHADO, 2006)
Foi
através da imagem das fiandeiras que melhor pude, num momento da minha análise,
expressar meus sentimentos sobre essa relação.
Fiandeiras
Um
tênue fio nos liga
de segredos e esperanças
como um cordão que alimenta
e ameaça romper-se
a qualquer hora.
de segredos e esperanças
como um cordão que alimenta
e ameaça romper-se
a qualquer hora.
Fio
de vida e de morte
um tênue fio das Moiras
construído passo a passo
de ilusões e memória.
um tênue fio das Moiras
construído passo a passo
de ilusões e memória.
Construtoras
do destino
tecelãs de nossas vidas
fiamos juntas, sozinhas,
tecidos de eternidades.
tecelãs de nossas vidas
fiamos juntas, sozinhas,
tecidos de eternidades.
Fiando
às vezes silêncios
os fios se embaraçam,
dão nós e arrebentam…
os fios se embaraçam,
dão nós e arrebentam…
E
do Nada surgem, então,
como de mãos invisíveis,
lãs quentes, jutas rudes, sedas suaves…
como de mãos invisíveis,
lãs quentes, jutas rudes, sedas suaves…
E
voltamos a tecer,
num trabalho incessante,
fiandeiras de nós mesmas,
tecidos de nossas almas.
num trabalho incessante,
fiandeiras de nós mesmas,
tecidos de nossas almas.
Penélope
e a moça tecelã
O
trabalho contínuo de Penélope, tecendo e desfiando, dia e noite, sem completar
sua tarefa, tem sido associado, às vezes, à rotina das tarefas domésticas
femininas, que não leva a nenhuma realização pessoal, nenhum crescimento
psíquico. No entanto, o mito mostra que esse trabalho repetitivo foi uma
estratégia escolhida pela heroína, esperando o retorno do marido, numa tentativa
de “parar o tempo”.
Podemos
imaginar que Penélope tenha sido inspirada por Atená, já que era essa deusa que
protegia o retorno de Odisseu (Ulisses). Porém, o padrão cíclico que
estabeleceu, tal qual os ritmos da natureza, revela, mais do que uma tática
racional, uma profunda conexão com sua essência feminina. A sua tão decantada
fidelidade, é, acima da lealdade ao marido, uma fidelidade a si mesma, à
manutenção da sua autonomia.
Quando
entregou Penélope em casamento a Ulisses, Ikarios, que não queria separar-se da
filha, seguiu o casal numa carruagem, implorando que ela voltasse. Ulisses
deixou a Penélope a decisão entre segui-lo ou voltar com o pai. Para Carolyn
Heilbrun, ao ter a opção de acompanhar ou não o marido destinado a ela, Penélope
tem uma condição excepcional em sua cultura, o que vai se refletir nos seus
movimentos de tecer e desfiar. “Ficou em casa, mas viajou a um lugar novo de
experiência, e criou uma narrativa nova.”(MACHADO, 2006) Esta frase, referente a
Penélope, serve também para resumir a história da personagem de A moça tecelã
(COLASANTI, 1982).
O
conto começa a partir da etapa de inteireza, auto-suficiência e conexão com a
natureza em que vive a personagem. Do controle total sobre sua vida e sua
criação, passa à descoberta da incompletude e solidão, à busca do companheiro, à
fantasia da maternidade. Ela, que fiava livremente todos os seus sonhos, se
torna prisioneira dos desejos do homem criado pela sua própria fantasia.
Exigindo que ela teça sem cessar, ele não permite que sua obra continue sendo
uma fonte de prazer e o resultado da sua liberdade de escolha e criatividade.
Felizmente, ele não pôde impedi-la de manter sob seu controle o tear,
prolongamento de suas mãos e de sua alma. Aparentemente, ela está dominada pelo
animus, mas se mantém em contato com a fonte de sua criatividade.
Do
mesmo modo que os símbolos do inconsciente, que parecem eclodir num “passe de
mágica”, a jovem tecelã desperta do torpor em que se encontrava e descobre o
caminho de volta. O fio que desmancha é como o do novelo de Ariadne, mostrando a
saída do labirinto. Retoma o controle de sua obra e de sua vida. Desfaz o que
teceu e chega de novo ao ponto de partida, porém transformada.
Penélope
e a moça tecelã, ao tecer e desfiar a seu próprio gosto, mantendo, sob a forma
de fio no tear, o controle de suas vidas, estão conectadas com sua verdadeira
natureza. A natureza Feminina representada pela Grande Mãe primordial, detentora
dos poderes de criação e destruição, de morte e vida. Senhora do Destino.
Respondem,
através da fiação e da tecelagem, o enigma proposto a Artur, que atravessa os
séculos, como um grande segredo a ser revelado para os homens: “Sabe o que
realmente quer a mulher? Ela quer ser senhora de sua própria vida!” (JOHNSON,
1991:98)
A
vivência do arquétipo da Grande Mãe como Tecelã do Destino é extremamente
importante para homens e mulheres. Por seu duplo aspecto, positivo e negativo,
tanto pode estimular a enfrentar as dificuldades como impedir de lutar pela
realização de desejos e necessidades.
Se
o Destino for vivenciado como promissor, pode estimular o investimento de
energia para alcançar as metas, mas, se for vivenciado como vazio ou trágico,
pode levar à desistência e ao fracasso. Em contraposição a esse aspecto de
fatalidade, o Destino pode ser vivenciado como resultado das escolhas que vão
sendo tomadas ao longo da Vida, do potencial de responsabilidade que se tiver
realizado.
Cada
um de nós pode, sem afrontar a Grande Tecelã, tomar nas mãos seu pequeno tear
individual e fiar, tecer, narrar, criar sua própria história.
REFERÊNCIAS�
ALMEIDA, L. Genealogias femininas in JARDIM, Rachel. O penhoar chinês.
Disponível em: www.ucm.es/info/especulo/numero24/genealog.htm.
Acessado em 27/06/2006 �
BRANDÃO, J. Mitologia grega. Vol.1. Petrópolis: Vozes, 1991
COLASANTI, M. Doze reis e a moça no labirinto de vento. Rio de Janeiro: Nórdica, 1982.
DICTA e FRANÇOISE. Mitos e tarôs – a viagem do mago. São Paulo: Pensamento, 1983.
ELIADE, M. Imagens e símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1991
FRANZ, M.L. Mitos de criação. São Paulo: Paulus, 2003.
JOHNSON, R. A. Feminilidade perdida e reconquistada. São Paulo: Mercuryo, 1991
JUNG, C.G. A natureza da psique. O. C. v. VIII /2. Petrópolis: Vozes, 1982.
MACHADO, A. M. O tao da teia –sobre textos e têxteis
Disponível em: www.htp.scielo.br/php?script=sci_artetext&piAcessado em 26/06/2006.
NEUMANN, E. A grande mãe. São Paulo: Cultrix, 1996.
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NEUMANN, E. A grande mãe. São Paulo: Cultrix, 1996.
Autora:
Celia Gago
Psicóloga clínica (CRP 05/959) Arteterapeuta
Pós-graduada em Teoria e prática junguiana (UVA)
Licenciada em História da Arte
e-mail: celiagago@gmail.com
Psicóloga clínica (CRP 05/959) Arteterapeuta
Pós-graduada em Teoria e prática junguiana (UVA)
Licenciada em História da Arte
e-mail: celiagago@gmail.com
enviado por Luna (Luthien) do grupo :
angeluz_barbara@yahoogrupos.com.br e
ChorozondheISIS@yahoogrupos.com.br <ChorozondheISIS@yahoogrupos.com.br>
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