Desapego
POR ARNALDO BLOCH /
Jornal o Globo.
Jornal o Globo.
A onda começou a se
propagar como qualquer grande surto: aos pouquinhos, sorrateiramente. Primeiro
foi um povo que, influenciado por receitas de felicidade e bulas de autoajuda,
começou a esvaziar o armário freneticamente em busca de elevação espiritual.
Despossuídos de seus
estimados objetos e penduricalhos, os adeptos suspiravam de alívio, como se, de
repente, o peso de um elefante cósmico tivesse sido retirado das costas por
causa de uns cabides a menos.
Depois, um outro
pessoal, reclamando de dores agudas de amor, resolveu que a solução era não se
amarrar mais em ninguém, aderindo a uma espécie de castidade romântica: é
melhor não bater para não valer.
Paralelamente a estas
novas manias, passou a circular, primeiro à boca miúda, depois como uma
convocação geral, a nova palavra de ordem, que atraiu multidões num só grito:
— Desapega!
As atitudes desapegadas
se multiplicaram em todos os setores da vida. Pintou até uma síndrome de
Nowhere Man: ter casa (própria ou alugada) não está com nada!
O negócio é “desapê do apê”. É sair por aí,
pelo país ou pelo mundo, com sua trouxa, trocando trabalho por moradia, com ou
sem cachê: cama ou colchonete, está valendo a vista para o mar, um rango
caseiro aqui, um champã extemporâneo ali, desde que aluguel, IPTU, condomínio,
síndico e vizinhos sejam palavras do passado.
Em sites como Andarilhos e Nômades Digitais,
os neomochilistas trocam aventuras e experiências, afinados com a vanguarda do
empreendedorismo correto. Famílias vivem em trailers com placas de energia
solar e decoração minimalista. Afinal, para os que seguem a nova ordem, fogão é
ilusão. Sofá é o que há. Privada não é nada. Roupa? Tá louca?
A ideia, que toma conta
de corpos e mentes de todas as classes, credos ou descredos, vem acompanhada de
livros com nomes sedutores como “A mágica da arrumação”, da japa Marie Kondo.
Danuza Leão também fez incursões na área com o
seu “É tudo tão simples”, e o lema “menos é mais”, título de best-seller do
gênero, virou campanha de TV por um amanhã sustentável.
Desconfia-se que o
vírus (do apego) sempre esteve aí, no eu profundo e em em outros eus, divididos
entre o ter ou não ter. Pode também ser um sinal dos tempos, ou do caos da
crise: escândalos políticos em série, quedas do PIB, viagens caras e
homens-bomba dão aquela vontade de sumir como num truque de gênio cada vez que
a conta-corrente se desapega do capital...
A onda da crise
UM LUGAR NO CORAÇÃO, UM
ARMÁRIO VAZIO
Moda ou tendência
comportamental, o desapego já frequenta as telas de cinema com um quê
ideológico, como na distopia “Divergente”, na qual a personagem, a jovem
Beatrice (Shailene Woodley), resiste a se enquadrar em todas as facções morais
de seu tempo para escolher a coragem de se privar de tudo e se converter em
salvadora, numa Chicago futurista.
Na vida real, de um Rio
de Janeiro nada utópico, outros heróis têm que se valer da virtude da coragem
para encontrar o dom. Um desses, o cantor Otto, o mais carioca dos retirantes
da cultura pernambucana, é adepto entusiasmado da prática do desapego, embora
através de um processo de autodescoberta descolado de receitas externas. Bom de
bola no jogo de palavras, seu relato da experiência bem poderia estar numa letra
de música.
— Sou o homem-desapego.
Sem ele seria ainda aquele agrestino cheio de sonhos despedaçados, entulhos e
medos. Já amei bastante para saber que, cedo ou tarde, temos que desapegar. O
desapego é um airbag da dor. Se não desapegar, a rotina e as neuras tomam conta
da gente e vem aquele sentimento possessivo. Desapegar não traz felicidade, mas
devolve o equilíbrio.
A adesão se explica
também por motivos práticos emergenciais: Otto, em breve, vai ter que trocar o
Vidigal, onde mora, por São Paulo.
— Vivo virado para o
mar no lugar mais lindo do mundo, onde acordo e durmo com as ondas e o luar.
São Paulo é o contrário exato de tudo isso.
Já tracei minha
estratégia de desapego e aos poucos me distancio da janela, o Vidigal vai se
ajeitando dentro do meu coração. Eu o levarei para sempre comigo. E assim os
lugares viram sonhos eternos — improvisa o artista.
‘Eu sou o
homem-desapego. Já amei bastante para saber que temos que desapegar. O desapego
é um airbag da dor’
- OTTO
Cantor e compositor
O impulso de desapegar,
queira-se ou não, está no cotidiano. Pode ser da forma mais superficial, como
ocorre em qualquer mesa de bar onde, tocados pelas enzimas alcoólicas, todos se
tornam sentimentais e despejam, nas rodas de chope, sofrimentos de várias
ordens.
Nessa hora, sempre
haverá uma voz que, como um pastor, virá com o bordão do desapego, destinado a
ajudar os desesperados (ou, pelo menos, fazê-los calar suas lamúrias).
Mais pungente é quando
o desapego entra na alma do possuído no momento em que este menos espera. Às
vezes, a ficha da vítima — ou felizardo — só cai quando o ciclo já está quase
completo.
É o caso da professora
e escritora Cristiane Costa, 45 anos, orientadora de mestrado da Escola de
Comunicação da UFRJ. Quando a reportagem a procurou para que desse dicas de
estudos acadêmicos sobre o tema, ela desconversou.
— Não tenho nada a
dizer academicamente sobre o assunto. Tudo que sei sobre desapego li nuns
livros.
O repórter pergunta que
livros são esses e, após dois dedos de bate-papo no Facebook, ela confessa que
não vira o ano sem defenestrar um terço de tudo que tem no armário.
Até que, desapegada de
escrúpulos, libera sua biografia atualizada:
— Quando fiz 40 anos,
achei que a vida tinha acabado. Nunca mais conseguiria sair daquele emprego,
nunca mais moraria em outro lugar, nunca mais me arrumaria para sair pela
primeira vez com uma pessoa. Pois parece que alguém lá em cima ouviu e me jogou
um raio. Um ano depois eu tinha largado o emprego, terminado um casamento e me
mudado. O que parecia difícil na verdade foi bem mais fácil do que eu temia —
relata.
A epifania, contudo, e
a plena conscientização de Cristiane só baixaram numa consulta médica de
rotina, no momento em que a secretária conferiu a ficha da paciente.
— O endereço continua o
mesmo?
— Não, mudou.
— Telefone fixo?
— Também mudou.
— Do trabalho?
— Mudou também.
— Estado civil?
— Mudou muito!
— Dona, pelo visto só
sobrou sua identidade mesmo...
‘Parece que alguém lá
em cima ouviu e me jogou um raio. Um ano depois, eu tinha largado o emprego,
terminado um casamento e me mudado’
- CRISTIANE COSTA
Jornalista , escritora
e professora
Identidade parece ser a
palavra-chave, a julgar pela ótica do monge carioca Segyu Rinpoche, 65 anos, há
décadas lotado em Los Angeles, e atualmente de passagem pelo Brasil, para a
montagem de um novo centro de meditação.
Considerado por alguns devotos a reencarnação
de um mestre tântrico do século XVII, Rinpoche vê no desejo o germe do apego.
— A agenda do desejo
constrói nossas identidades: o apego ao nome, à fortuna, a um título, a
elogios, a condições, é um processo cumulativo. Dadas a cultura, a política, as
finanças, se tenho dificuldades de realizar meus desejos, perco imediatamente
meu status e minhas postura psicológica e física. E agora que não posso manter
o carro que comprei?
Então, se estou em
crise, deixe-me desapegar da matéria... Aí a pessoa vai para outro extremo, se
desfaz da abundância e, de repente, vê que não adiantou nada — reflete o monge.
Essa necessidade de se
desapegar de bens materiais mais valiosos desaguou num movimento radical de
vulto, o Giving Pledge, iniciativa de Bill Gates e Warren Buffet. Em 2010, os
trilhardários, através de um bombástico manifesto, conclamaram todos aqueles
que estão nos himalaias da escala social a doar a maior parte de suas fortunas
para causas nobres, caridade, filantropia, mutirões educacionais etc.
Mais recentemente, Mark Zuckerberg, o mago do
Facebook, anunciou ter desistido de 99% de suas ações na empresa, deixando
míseros 1% para comprar o pãozinho da família e dos herdeiros.
O próprio Bill Gates
virou um grande mecenas das vacinações em massa e, graças ao movimento fundado
por ele, centenas de comparsas são signatários do “deu a louca nos ricos”.
Estimativas as mais
variadas falam de trilhões em renda distribuída, para além de qualquer fantasia
assistencialista. Herdeiro do grupo Pão de Açúcar e ex-piloto de Fórmula 1,
Pedro Paulo Diniz é um caso local de afortunado que desapegou e abraçou a
meditação.
Houve quem especulasse
que, por culpa, consciência social ou algum motivo inconfessável, movimentos
assim seriam capazes de, num dado momento, esvaziar a “Forbes”. Um socialismo
definitivo, reabilitado, redimido, renasceria das culpadas cinzas dos melhores
charutos acendidos em série com notas de US$ 100.
— Isso é o que eles
declaram que doaram — diz o psicanalista José Nazar, um dos mais importantes
discípulos de Lacan no Brasil, insinuando que, no caso das grandes fortunas,
trata-se, isso sim, de um desapego fiscal. — O dinheiro firme está ali, nos
grotões paradisíacos, inacessíveis aos olhos do povo e das autoridades.
Nazar enxerga, nesta
ânsia de desapegar com ares de filosofia contemporânea, um certo autoengano que
beira o embuste.
— O ser humano é
apegado. Cada vez mais.
A objetos, a vivências, às lições de seus
pais. Na corrente humana, o que prolifera, basicamente, é uma maneira de ser em
termos de apego. O
que vejo nessa falsa
ideologia é uma tendência de negação.
Uma espécie de fachada
para uma grande melancolia que se alastra nos bastidores. O primeiro desapego
vem da queda dos humores que está subjacente e emerge. Um desinteresse.
Uma forma bacana,
chique, de entrar em depressão. Ora, quem está bem é apegado. Gosta de trepar,
ler um bom livro, ter as suas coisas — prega Nazar.
‘O desapego é uma
maneira bacana, chique, de entrar em depressão’
- JOSÉ NAZARPsicanalista
Para evitar o risco de
abençoar práticas consumistas exorbitantes, o psicanalista José Nazar faz uma
ressalva:
— Há mulheres que
gastam R$ 150 mil por mês em roupas com a maior naturalidade e quando vão
experimentar o vestido descobrem que já tinham três iguais, o que não muda seu
comportamento em compras futuras.
Essas pessoas têm 500
pares de sapatos. Nesse caso, é doença grave, mesmo. Não é o gozar a vida a
partir da realidade. Casos assim podem acabar com o sujeito pegando um avião
para a Índia e voltando, exausto, de primeira classe.
Voltemos à Índia,
então. É ilustrativo consultar as palavras de Osho (1931-1990), finado e amado
guru de meio mundo, em confronto com a análise de Nazar. Ao contrário de ser um
signo positivo do princípio vital, o apego, para Osho, é a origem de todos os
males.
“Todas as nossas
misérias e sofrimentos não são nada mais do que apego. Toda a nossa ignorância
e escuridão é uma estranha combinação de mil e um apegos”, escreveu.
Para quem está
acostumado ao mito das mil e uma utilidades, a ideia de estar preso a mil e um
apegos é capaz de transformar o cabelo mais liso num superbombril.
Para amenizar o risco
de provocar desespero nos leitores, a reportagem volta ao monge (vivo) para
encontrar uma alternativa mais equilibrada, que não implique uma renúncia
inconsequente.
— Em tempos de crise, a
primeira coisa que a pessoa diz é: “Vou desapegar.” Muita gente acha que, como
monge, tenho que ser um mendigo, como eram os antigos. Ora, vivo bem, como bem,
tenho boa moradia. Não tenho que jogar toda minha posição material fora.
Posso ter uma parte física funcional e
contribuir para uma sociedade que não seja corrompida pelo seu desejo e seu
apego em detrimento do sofrimento alheio, que é, aliás, o que faz o Brasil
estar na situação que está.
De acordo com os
estudos do monge, grande parte da confusão está na necessidade de se
diferenciar posse de possessividade, seja na matéria ou no terreno dos afetos.
— A chave está na paz
consigo próprio.
Se tenho uma relação
com você e você não me trata bem numa dada situação, eu então imediatamente
acho que você não gosta mais de mim, em vez de analisar momento a momento, o
quadro geral.
Daí surgiriam, segundo
ele, uma série de impressões falsas, ilusórias e até delirantes, tão irreais
como desnecessárias.
— A raiz deste problema
está na obsessão que tenho de possuir um objeto ou uma pessoa. É preciso tentar
enxergar onde está a obsessão, como agem meus padrões internos e por que eu
sofro tanto com o ter ou não ter.
A consciência do mal
que causa o esforço enorme gasto em manter o que tenho ou em obter o que é
desejável pode ser extremamente libertadora. Ver o quão tolo é viver na
angústia dessa sobrevivência através de uma “identidade” sem a qual não tenho
paz.
Mantendo-se firmemente
no registro oposto, ou, no mínimo, complementar, o psicanalista José Nazar acha
que o desapego como fuga surge exatamente na incapacidade do sujeito de desejar
e, no limite, encarar e enfrentar as consequências da prática de seu desejo.
— O sujeito desejante,
como sabemos, tem que matar um leão por dia para alimentar seus impulsos. Ele
vai a um consultório descobrir qual o seu desejo. Mas o desejo não se sustenta
sozinho.
Ele necessita de uma estima, um estímulo, um
investimento permanente e uma extrema coragem de abrir mão de uma série de
garantias. Quando não há esta disposição, a subjetividade se oculta. E quando a
subjetividade se oculta, quando o sujeito não consegue falar, é o corpo que
fala, através de todos os tipos de doenças.
Como todas as
tendências que se reproduzem em sistemas de moda espontâneos (ou automáticos),
o desapego acaba funcionando como um amálgama no qual cabe tudo. Anúncios de
sites de e-commerce mostram mobílias, eletrodomésticos e joias que evaporam
para que a vida floresça num sorriso instantâneo.
—Nenhuma campanha
publicitária, de propaganda de TV que diz “desapega”, pode ser levada a sério.
A não ser, claro, como exercício criativo dentro desse universo. Quando o
desapego é apropriado pela lógica perversa do simplismo, temos a certeza de que
estamos no caminho errado — analisa o escritor e professor de literatura Flávio
Carneiro. — O que Bandeira e Drummond têm em comum com Garrincha?
A arte da simplicidade. Tão duramente
conquistada, ela fica confundida com simplismo. No geral, o que vigora é gente
querendo resolver de forma simplista problemas complexos. A autoajuda é
exatamente isso. Então, quando alguém diz que é preciso desapegar, é preciso
ver quem é que diz. Isso provoca vulgarizações do gênero “Ah, estou zen. Ele é
muito zen”. Ora, sabe lá o que é zen? — indaga.
. - .
No tempo do desapego, a
palavra se presta a usos paradoxais: o mesmo desapego que manda renunciar ao
acúmulo de dinheiro é o que incita a gastá-lo todo num impulso, como se o ato de
compra fosse, sempre, uma aventura de libertação.
No marketing
institucional, máximas como “menos é mais” (que ecoam um best-seller homônimo)
podem tanto servir a uma proposta construtiva (de economia de energia, de
poupança, de responsabilidade ambiental e social), quanto a uma fantasia
impossível de “consumo inteligente”, tão vaga como vaga está, ou estará, a
poupança do cliente se atender ao apelo.
Canções, como
“Desapega”, de Henrique e Diego, dupla sertaneja romântica, em meio a versos
que pregam a proverbial soltura da franga, parecem tocar, conscientemente ou
não, no cerne da questão: “Desapega desse medo de desapegar”, diz o refrão.
O que faz pensar na
hipótese de que o desapego, em última análise, nada mais é que apego: o adepto
da moda de desapegar se apega ao desapego; uma vez apegado, tem que continuar o
esforço de se desapegar (do desapego), o que cria um novo apego, num ciclo
infinito onde o objeto do sofrimento está, sempre, oculto e fortalecido.
Na percepção do rabino Nilson Bonder, essa história
é tão antiga quanto o humano.
— Essa é sempre uma
grande armadilha: apegar-se a seu desapegar! As ilusões são uma reflexão
infinita de nós mesmos e podemos “nos iludir de não estarmos iludidos” na
proporção direta de nossa inteligência ou nossa esperteza.
Num relato chassídico,
o filho acorda no meio da noite e pergunta ao pai rabino: “Se é possível
acordar de estar dormindo, é possível acordar de estar acordado?” O pai
responde que sim, porque sempre podemos estar mais despertos e lúcidos.
Mas o pulo do gato está
em saber o que é “estar acordado”. E na história o filho conclui: “E como sei
que estou acordado?” O pai responde: “Quando você se pergunta se está acordado
ou dormindo, aí sim você está desperto!”
A ilusão não se pode
confrontar com certezas, mas com dúvidas sobre se estamos ou não despertos —
ensina Bonder.
O problema é que nem
sempre a esperteza prevalece, e quando postos à serviço das fórmulas feitas,
esses exercícios acabam levando à amargura.
— É como a pessoa que
diz: amanhã paro de fumar, ou vou entrar na ginástica — exemplifica Flávio
Carneiro. — Depois se frustra por não tê-lo feito, sem se dar conta de que o
erro foi prometer sem estar preparada. Essa é a armadilha do simplismo. Sua
grande perversidade. Para se desapegar, acho que é preciso algum dom especial,
ou, então, muita humildade.
Outra solução pode
estar na simples percepção do que há de cruel na imposição da renúncia como
fórmula para a felicidade. É o que diz, com candura, o estudante Fernando Vale,
no quinto período de
Publicidade e estagiário de marketing digital:
— Tudo bem: se eu me
apego a alguma coisa ou a alguém, é porque sei que vou ter que me desapegar em
algum momento, as coisas não são eternas.
Mas, nesse desapego
completo de que falam hoje em dia, você deixa de aproveitar aquilo só para não
sentir a perda, uma coisa meio covarde de alma. Para evitar a dor, fui
inventando minha própria espiritualidade, para não surtar.
Isso quando desapegar
não é o simples efeito de terminar um ciclo, ou uma obra. Muito recentemente, o
autor de novelas João Emanuel Carneiro, de “A regra do jogo”, viveu, mais uma
vez, a experiência.
— Tive que ir para o
mato. Agora estou de volta. Quando termina a novela, é sempre como se a casa
ficasse vazia de repente, o que por um lado é muito triste mas por outro abre
espaço para que algo novo apareça.
Você diz que o impulso do desapego é
um tipo de depressão. Que tipo?
É uma nostalgia
melancólica que está tomando conta da nossa contemporaneidade. As pessoas estão
sem vida de desejo. Estão se desapegando do sentimento de viver para não
enfrentar.
É o tipo de procura que mais tenho visto no
consultório. O desapego, nesse contexto, é mais impotência do que ideologia.
Num tempo de crise econômica e de caos político, a coisa se agrava.
Como se inicia esse processo que,
segundo você, é patológico?
É o que Freud chama de
covardia moral: abrir mão do desejo. O sujeito deve “querer aquilo que deseja”,
estar de acordo consigo. Quando não consegue, está mal. Quando consegue, está
no bom caminho.
Não há um desapego positivo?
Não. É uma escapatória.
Em suma, esse “despojamento” de que tanto se fala é papo de neurótico. Há que
se desconfiar dessas afirmações. Formam um núcleo patológico de uma afirmação
filosófica.
Mas... e as lições do budismo? A
renúncia material?
Aí é uma forma de ser
mais estruturada, genuína, um modo de vida apreendido desde uma idade mais
remota.
Desapego é apego?
O ser humano é muito
carente. Para fugir à verdade sobre a morte, ele se apega a ilusões, a
religiões e a crenças disfarçadas de ideologias. Desapego é apego a uma crença
para regular o sofrimento.
Não pode ser visto como um discurso
crítico aos excessos?
Os excessos são os
excessos. Pode-se freá-los, mas deixar de querer, de desejar? As pessoas se
queixam de uma solidão, aí, sim. De quebrar a barreira para encontrar um objeto
de desejo.
Há um texto de Freud, “Os arruinados do êxito”. São pessoas que,
quando estão no auge, criam uma situação de excesso e colocam um fim. Artistas,
esportistas, pessoas de grande fama que dão fim à vida. É o desapego máximo no
nível da psicologia humana.
Deixando de lado quem chega a um ato
tão extremo, na sua visão, o desapego seria um tipo de suicídio em vida?
Sim. Gente que tudo tem
e entra em negação. Veja o exemplo oposto: esses rapazes que vão para o tráfico
e quando passam dos 20 anos e sobrevivem, eles estão no lucro, e muitas vezes
lutam por algo, e vencem, e conquistam, e desejam. Todo filho é alimentado por
ideais dos pais. Apegam-se a isso. Isso vai criar um amor à vida.
O que é o desapego, na visão do
budismo tibetano, que você pratica?
De acordo com a
filosofia budista, nós humanos temos três características fundamentais.
Primeiro, a raiva. Em diversos graus, uns benéficos, quando se trata de
proteger quem está sob injustiça.
Segundo, a ignorância: falta de consciência,
confusão, denegação da realidade. A terceira é o apego, resultante do desejo. A
questão é como colocar esses três fatores, vistos como venenos pela medicina
tibetana, em harmonia.
Não deve ser fácil... Tem que pisar
em muita brasa...
Ter uma casa
confortável não é um pecado. O que não posso é ter uma postura mental em que se
eu perder a casa, minha vida sai completamente do controle.
Há quem diga que o controle é
impossível, daí, justamente, esse impulso de se desapegar: aceitar que não se
pode controlar.
Não vou conseguir
jamais eliminar os meus desejos de paz, de conforto, de tranquilidade. Uma das
maneiras de buscar esse equilíbrio é a meditação e a observância dos padrões de
comportamento obsessivo que desejo moderar. A pessoa pode doar toda a sua
fortuna e isso não quer dizer que seu desejo está moderado, controlado.
Você foi um dos mentores espirituais
de Steve Jobs no fim da vida. Ele se desapegou?
Ele tinha um grande
apego ao próprio ego e um medo de se apresentar como agente filantrópico. Não
era um homem de ganância pessoal. Mas ao mesmo tempo tinha uma ânsia por
acúmulo de poder e um desejo por essa possessão e por sua imagem pessoal.
No
final da vida, ficou mais aberto, mas a mudança não foi tão significativa para
ele e para o mundo... Ficou atrelado a um grande apego à privacidade. Talvez porque
se visse como alguém que doou ao mundo uma grande revolução de costumes.
O que ocorre quando o desapego vira
moda?
Ele nunca vira
realmente moda, pois faz parte de uma dinâmica de oposição ao apego. Mas em
tempos de crise, a primeira coisa é dizer vamos desapegar. Um paliativo. Para
atuar nesse mundo e sobreviver moralmente.
Já no budismo, não é um paliativo: é
uma preocupação permanente, preventiva e não curativa, o que tira o caráter
cíclico e aproxima do fundamental. Para encontrar paz e serenidade
independentemente da marcha do mundo, seja eu um executivo, um jornalista, um
monge, preciso me livrar do abuso das identidades, do modo “Eu sou e você não
é”. Assim, se eu não for mais, não sofro.
Postado por Dharmadhannya
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