sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

A estrela dos desejos





Este texto é muito profundo e nos fala dos nossos desejos, da nossa vontade.
Se observarmos o que falamos, o que queremos e nossa carência, podemos observar a direção dos nossos desejos.
Nossa sorte está com os nossos desejos, com nossas palavras e afirmações.
Seja feita a vontade de Deus dentro de mim.
Amem"
Dharmadhannya


 Um desejo entre noite.]



Star light, star bright,
First star I see to?iight,
I wish I may I wish I might,
Have the wish I wish tonight.

[Estrela, estrelinha,
primeira estrela desta noite,
me conceda, me conceda,
um desejo entrenoite.]

— PEDIDO TRADICIONAL A ESTRELA CADENTE
Cinco lições de desejadores sábios

Paz, alegria, orientação, fé e amor.

Em nossas entrevistas com pessoas do mundo inteiro sobre os seus desejos, esses cinco aspectos da vida encontravam-se sistematicamente na base de seus desejos.

Em meus dez anos de conversa com mais de dois mil pacientes e pessoas de todas as camadas sociais, percebi claramente que independentemente das palavras em si,
quase todos eles tinham um desejo que inseria em uma dessas áreas ou dizia respeito a um desejo frustrado relacionado a elas.

Além disso, ficou claro que há um lado escuro, oposto, em cada um desses domínios do desejo que contribui com uma parte de seu poder negativo essencial.

 Todo desejo tem um elemento negativo, pois de algum modo exprime uma necessidade não só de obter algo, mas também de se livrar de alguma coisa durante o processo de obtê-lo.
 O desejo de recuperar-se de uma gripe é também um desejo de matar o vírus que a provoca.

 Quando desejamos com egoísmo, impulsivamente e reativamente, sem consciência do lado escuro do desejo, ele entra em desequilíbrio.
 Quando deixamos que a personalidade, o egocentrismo cuide de nossos desejos por nós, esse lado escuro pode tomar conta do caráter do desejo, podendo fazer-nos lamentar posteriormente a sua concretização.

A chave para desejar (o) bem é desejar mais com o coração, com a alma, com calma e percepção do delicado equilíbrio entre obter o que quere­mos e perder o que necessitamos.
O desejo iluminado realiza a Vontade de Deus - nosso dharma, para nossa felicidade.




Cyprian Norwid, poeta polonês do século XIX, disse:
 “Para ser aquilo que se chama feliz, é preciso ter algo de que viver, algo por que viver e algo por que morrer. A falta de um desses elementos provoca um drama.

A falta de dois, uma tragédia”. Quando analisamos as entrevistas e os resultados dos testes sobre o de­sejo distribuídos entre os 2.166 participantes da pesquisa, identificamos sistema­ticamente as três categorias da felicidade propostas por Norwid.

 Além de algo de que viver (saúde e dinheiro suficientes para ter paz), algo por que viver (equilíbrio e alegria suficientes para experimentar a felicidade) e algo por que morrer (desa­fio e compromisso suficientes à percepção de uma direção na vida e para a vida),

descobrimos que essas pessoas também desejavam algo depois da morte (fé) e al­guém com quem compartilhar a alegria dos desejos formulados nos outros quatro domínios (amor).

Para estabelecer coerência em nossas entrevistas, delineamos uma estrela de cinco pontas, cada uma representando os cinco domínios que passamos a chamar de estrela dos desejos.

Ela contém tanto elementos “luminosos” como elementos “sombrios” (veja a figura acima).


Com sua ajuda, conseguimos classificar a maioria dos desejos como pertencentes a uma dessas duas áreas. Para abarcar to­da a gama de desejos que identificamos, denominamos as cinco pontas da estrela de “serenidade”, “deleite”, “propósito”, “sentido” e “compaixão”.

 Rotulamos os re­sultados do lado sombrio do desejo como “conturbação”, “desilusão”, “estagnação”, “desespero” e “solidão” .

Os desejos relatados pelos participantes da pesquisa foram classificados em uma das cinco categorias das duas áreas opostas básicas aqui definidas: a lumino­sa e a sombria.

 Os sujeitos que relataram haver presenciado a concr
etização do seu desejo revelaram uma aguda percepção dos aspectos não apenas favoráveis, mas também letais dos cinco domínios da estrela dos desejos.

Serenidade: Desejo de tranquilidade. Aqui os desejos relacionam-se à busca sistemática e previsível de uma sensação de paz e segurança, livre de stress e preo­cupações com a saúde, integridade e sobrevivência econômica, próprias ou de ou­trem.

 Esse tipo de desejo costuma relacionar-se à sensação de controle sobre a pró­pria vida.

Conturbação: Desejo que traz agitação. Pouco se consegue na vida se não houver disposição para agitar um pouco as coisas. Quando queremos mais con­trole do que a natureza permite, arriscamo-nos a perder a verdadeira serenidade para seguir no fluxo da vida.



 Sem os altos e baixos essenciais, a vida se torna mo­nótona e entorpecida, tanto espiritual quanto intelectualmente.
 Na busca de uma superserenidade, deixamos de ver a alegria das surpresas naturais da vida e as im­portantes lições espirituais de seu caos, que é o que desafia e cultiva a alma.

 O de­sejo de serenidade completa pode se transformar no desejo de uma ausência de vi­da ou provocar um estado de agitada busca crônica de uma paz e tranquilidade, ou isolamento que estão sempre além de nosso atual estado.

 Isso, por sua vez, leva à sensação de que as coisas estão sempre “estragando” nossos planos, quando na verdade somos nós mesmos que estamos desejando isso para nós.

 Sentimos medo constante pelo nosso próprio bem-estar físico ou financeiro ou pelo de outrem. Aqui os desejos que se situam na área sombria relacionam-se à tentativa de manter o controle, quando a melhor estratégia seria desejar ser capaz de renunciar a ele.

Deleite: Um desejo, de alegria. Aqui, o que se deseja é a sensação de júbilo felicidade. Trata-se de desejos em que o indivíduo quer sentir regozijo a maior parte do tempo.

Desilusão: Um desejo que resulta em decepção. A única emoção verdadei­ramente negativa é a que traz consigo a sensação implacável de “estar de pés e mãos atados”.

 Aqui, o lado escuro do desejo diz respeito à expectativa constante de fe­licidade e “alto astral”. O desejo de deleite sem sofrimento nem infelicidade não é realista e pode provocar a sensação de que nada tem poder suficiente para alegrar-nos.

Assim, não arriscamos, temos medo, e evitamos laços, compromissos. “Viver em Paz...”, tem um lado solitário que a “paz” da solidão oferece.
Isso faz as pessoas à nossa volta pensarem que a culpa é delas. Este lado escuro do desejo se evidencia através de um limiar cada vez mais alto de intolerân­cia ao que não trouxer prazer.

Propósito: Um desejo de sentir-se produtivo. Aqui, o desejo diz respeito à busca do orgulho e do amor-próprio em razão do trabalho cotidiano.
 Desejar (o) bem nesta área provoca a sensação de importância individual através de contribui­ções que obtêm reconhecimento. 

Os desejos deste domínio relacionam-se, então, à sensação de importância.
Estagnação: Desejo que provoca a sensação de inutilidade. Neste domínio, o lado escuro do desejo é representado pela sensação de falta de valor em tudo aqui­lo que esteja relacionado ao trabalho cotidiano, pode levar a depressão.

 Ela é frequentemente verificada en­tre os que se veem presos a tarefas inúteis, pouco valorizadas ou até destrutivas, que proporcionam pouco orgulho aos que as executam.

Querer que o trabalho não te­nha um lado cansativo, repetitivo, que não traz reconhecimento, é ser pouco realis­ta e correr o risco de desencantar-se com o que faz e de sentir-se insignificante.

Sentido: Um desejo de ser confortado. Neste domínio, o desejo tem que ver com a segurança espiritual, com uma sensação de compreensão e otimismo em re­lação ao sentido da vida e da morte.

 Aqui, o desejo diz respeito à posse de um sis­tema explanatório adaptável e adequado para os maus momentos da vida, um sis­tema que nos ajude a entender e aceitar sua aparente injustiça.

Ou, conforme colocou um dos participantes de nossa pesquisa: “A vida é justa — só que talvez não na nossa visão de justiça”.
 Se os desejos de serenidade relacionam-se à sensa­ção da segurança física, os de sentido relacionam-se à sensação da segurança espi­ritual aqui e daqui por diante.
Desespero: O desejo que leva ao ceticismo e ao desespero espiritual. O lado escuro de um desejo de sentido na vida é o pessimismo e a falta de um sistema ex­planatório dinâmico, que promova ajuste às crises transicionais da vida.

O pessimismo revela inconscientemente um desejo de sofrimento, de morte de perdas.

 O desejo de garantias espirituais, sentido e respostas definitivas para perguntas que não po­dem ser inteiramente respondidas leva ao lado escuro do sentido, representado pe­la descrença irascível em tudo que não possa ser reconhecido no mundo dos cin­co sentidos.

Compaixão: Um desejo de sentir-se adorado. Aqui, o desejo relaciona-se ao amor recíproco. Ele leva à sensação de uma ligação forte e profunda e de ser ama­do tanto quanto se ama. Neste domínio, desejar (o) bem traz então a sensação de estar segura e permanentemente vinculado a outra pessoa, com a qual se pode compartilhar a paixão pela vida que se manifesta nos outros quatro subdomínios do desejo.

Solidão: O desejo que leva à sensação de distanciamento. O lado escuro dos desejos do domínio da compaixão provoca a sensação de isolamento e separação.

 Ela provém muitas vezes de um desejo pouco realista de amor sem conflito, sofri­mento nem angústia e do desejo de “ter”, em vez de “ser” o parceiro certo, perfeito.

Este desejo intolerante, sem empatia, não suporta a individualidade do outro. Não há generosidade e troca.

 Esse ti­po de desejo deixa as pessoas frustradas e seus parceiros, atônitos, perguntando-se eternamente como conseguir ser quem elas desejam.

Quando entrevistamos os participantes de nosso estudo sobre o desejo acer­ca de sua experiência nas áreas de luz e sombra do desejo, utilizamos a escala abai­xo.

 Ela se destinava a ajudá-los a refletir sobre os resultados de seus desejos e a per­ceber onde estavam desejando (o) bem na estrela dos desejos.


Escala dos domínios do desejo
Marque o número que melhor indica o ponto em que você se encontra ago­ra na escala dos domínios do desejo. Use as definições que acabamos de fornecer para determiná-lo.

Paz
1.                   Minha vida neste momento se caracteriza pela sensação de:
Conturbação 123456789 10 Serenidade

Alegria
2.                   Minha vida agora é principalmente:
Desilusão 12345678910 Deleite

Orientação
3.                   Em relação ao dia-a-dia do meu trabalho, tenho a sensação de:
Estagnação 12345678910 Propósito

4.                   Em minha vida espiritual neste instante, tenho a sensação de:
Desespero 12345678910 Sentido

Amor
5.                   Em minha vida amorosa atualmente, sinto uma profunda:
Solidão 123456789 10 Compaixão

Após refletir sobre os resultados que obtinham nos cinco domínios da estre­la dos desejos, os participantes geralmente conseguiam identificar quais deles apre­sentavam maior desequilíbrio, com propensão para o lado sombrio, exigindo aten­ção mais imediata.

 Os que desejavam (o) bem tiveram uma média de 7 em cada domínio. Os que relataram frustração e decepção em seus desejos tiveram uma média de 3. 

O desejo pouco realista de obter 10 em cada um dos cinco domínios provavelmente resulta em uma queda em direção ao lado escuro, à medida que o inevitável desânimo se instala.

O desanimo é a carência da energia de Eros, da paixão, da motivação, esperança, empatia...

Após discutir os lados luminoso e sombrio dos cinco domínios da estrela dos desejos, comentamos as lições aprendidas pelos participantes em sua experiência desejante.

 Discutimos a diferença entre o que eles percebiam como desejos do cérebro e do coração (cf. a figura da página 126). Essas lições são a seguir apresentadas.
O desejo de serenidade
Lição do projeto do desejo: “Deseje a sabedoria de buscar o que o coração ne­cessita, e não o que o cérebro quer”.

Todos nós temos desejos que se relacionam à necessidade de ter algo de que viver. Desejamos coisas e situações que nos tragam a paz e a certeza neste mundo cada vez mais veloz e imprevisível. Desejamos as coisas que nos dão mais seguran­ça e nos permitem a certeza de que seremos capazes de viver com saúde e confor­to razoável.

Não é de surpreender que tantos dos participantes tenham referido um de­sejo de “um pouco de paz e tranquilidade”. Em pouco mais de sessenta anos, fo­mos do primeiro limite de velocidade de 40km/h em Londres aos 50.000km/h da Apollo 10, com seus astronautas flutuando no espaço.

 Confundindo maior velo­cidade com vida melhor, o cérebro nos incita a ir em frente cada vez mais rápido. Na maioria das vezes, o resultado é um turbilhão frenético, uma abordagem consumista da vida e uma enorme quantidade de “doenças da pressa”, como a hiper­tensão e os distúrbios cardiovasculares.

Pesquisas mostram que quase três quartos da população dos Estados Unidos acham que o tempo está passando depressa demais e gostaria de “ter tempo” para re­laxar.

 Um de meus pacientes disse: “Minha vida é uma verdadeira loucura. A gen­te acorda e vai embora, vai levando até voltar para casa e então desaba. Não me lembro mais quando foi que fiz uma coisa de cada vez”.
 Talvez no futuro o sécu­lo XX seja visto como “a loucura dos cem anos”, uma época em que as máquinas que nós mesmos criamos começaram a nos escravizar.2

 Ele começou com cavalos e horas e terminou com Maseratis e frações de segundo. Os desejos do primeiro domínio (serenidade) são tentativas de superar o que um dos participantes de nos­sa pesquisa chamou de “ritmo de Paige”, por causa do lançador de beisebol Sat- chel Paige, que teria declarado certa vez:



 “Não pare para olhar. Você vai acabar fi­cando para trás”.
Segundo esse participante, era assim que ele se sentia, pois ficava impaciente até diante de uma porta giratória, sempre com a sensação de que pre­cisava correr cada vez mais para não ficar para trás.

O nosso ritmo de vida cada vez mais acelerado afetou profundamente um dos órgãos do corpo que mais reagem aos ritmos orgânicos, pois é o responsável trabalharpor eles.

Nosso coração apressado não consegue acompanhar o ritmo que lhe im­põe o pouco solidário cérebro. O número de pessoas que morrem de doenças car­díacas nos Estados Unidos a cada dia equivale a sete acidentes de aviões jumbo sem nenhum sobrevivente.

 Nosso desejo de ter mais e cada vez mais depressa nos levou a matar de pressa o coração. Saiba o cérebro ou não, quando desejamos se­renidade, o coração está lhe pedindo um tempo para não explodir. Ele só quer di­minuir a correria e relaxar um pouco para poder formular seus próprios desejos, mais cheios de luz.

Um dos participantes referiu-se aos desejos do domínio da serenidade como desejos de “saúde e riqueza”, desejos de coisas que trazem mais conforto,

seguran­ça e uma velocidade mais saudável na vida de todos. Os que desejaram (o) bem preferiram a gratidão pelo que tinham a satisfazer os sombrios desejos do cérebro. Os que estavam felizes com o resultado de seus desejos de serenidade pareciam ter consciência do que pode ser mudado na vida e do que não pode.

 Em vez de dese­jar evitar as doenças, eles desejaram a capacidade de curar a si mesmos e aos ou­tros. Em vez de desejar mais dinheiro, desejaram gozar o dinheiro que tinham. Aparentemente, desejaram a sensação de navegar pela vida, em lugar de ser con­duzidos por ela.

Para exemplificar os desejos de cada domínio, compilei uma lista do lado lu­minoso da estrela através dos desejos de participantes que obtiveram 7 ou mais em nosso teste.

 A seu lado, está uma lista de desejos do lado escuro da estrela, formu­lados por participantes que obtiveram 3 ou menos no mesmo teste. (primeira parte)



Necessidade e Desejo: Um diálogo entre Freud e Marx

Por Ricardo Jardim Andrade
 “Desejar é o âmago de nosso ser”, declara Freud numa de suas obras mais importantes: A interpretação dos sonhos. Marx, por sua vez, afirma em A ideologia alemã, ensaio que escreveu em parceria com Engels: “O primeiro fato histórico é a produção dos meios que permitem a satisfação das necessidades [humanas]”.

 Freud teorizou o desejo e Marx a necessidade, procurando cada um deles determinar, a partir de horizontes distintos, o que poderíamos denominar, na esteira de F. Tinland, “diferença antropológica”. 

Em que medida estes dois enfoques da realidade humana se complementam e se diferenciam? É possível conciliar Marx e Freud ou, antes, suas perspectivas teóricas divergem fundamentalmente? É o que discutiremos a seguir. 

          Freud sempre teve a preocupação de oferecer às suas investigações e descobertas clínicas um arcabouço conceptual. Seu projeto era construir um novo campo de inteligibilidade para os fenômenos e processos psíquicos com base na observação clínica das neuroses e dos sonhos.

 Surgiu, assim, o que ele próprio denominou “metapsicologia”, vale dizer, a teoria psicanalítica. Trata-se do estudo do psiquismo – ou, da alma (Seele) humana, para empregarmos, como nos mostrou B. 

Bettelheim, um termo usado e valorizado pelo próprio Freud – sob tríplice ponto de vista, a saber, o tópico, que recorre à metáfora do lugar psíquico (sistemas inconsciente e pré-consciente/consciente, na primeira tópica; as instâncias do id, ego e superego, na segunda tópica);

o ponto de vista econômico, que emprega a metáfora da energia psíquica e dos investimentos energéticos (desinvestimento, contra investimento e superinvestimento);

 e, finalmente, o ponto de vista dinâmico, que corresponde à metáfora do conflito psíquico, cuja base é sempre de ordem pulsional (pulsões sexuais versus pulsões de auto conservação ou do ego, na primeira classificação; pulsões de vida versus pulsões de morte, na segunda classificação).

         Freud, contudo, não se limitou à investigação dos fenômenos clínicos e à elaboração de uma teoria complexa para explicar os fenômenos e processos psíquicos, mas procurou aplicar os modelos metapsicológicos no campo da cultura.

 O mesmo desejo que dinamiza o “aparelho psíquico” e produz sonhos, sintomas e atos falhos sustenta as mais elevadas criações humanas, no plano da arte, da moral, da ciência, da filosofia e da religião.

 A interpretação da cultura, porém, é mais do que uma psicanálise aplicada, pois a própria metapsicologia foi modificada sob o impacto do dado não clínico.

 Com efeito, nem a segunda tópica, nem a segunda classificação das pulsões seriam viáveis se a atenção de Freud não tivesse se desviado do recalcado para a instância que recalca, do desejo para a autoridade, da clínica para a cultura.

         Tendo em vista o objetivo da presente exposição, vou deter-me na primeira classificação das pulsões, para estabelecer um confronto entre a teoria freudiana do desejo e a teoria marxista da necessidade.

 Freud, na fase inicial de seu percurso teórico, distingue explicitamente a ordem biológica, correspondente às necessidades vitais (comer, beber, dormir etc.) da ordem sexual, correspondente ao desejo.

 Enquanto as pulsões de auto conservação (necessidades vitais) possuem fontes (sua base somática), objetos (as coisas que levam à satisfação) e objetivos (as satisfações provocadas pelos objetos correspondentes) fixos, as pulsões sexuais são, no dizer de Freud, “plásticas”, quer dizer, mudam de fontes, objetos e objetivos[1].

 Em relação à fome, sede, micção, respiração etc., ou seja, a tudo o que concerne à auto conservação, a única solução possível para reduzir as tensões do organismo, que provocam insatisfação, é a realização de certos “atos específicos”, mediante os quais se obtém diretamente, sem qualquer mediação e sem demora excessiva, a satisfação.

Não há como eliminar fome e sede senão pela ingestão de líquidos e de refeições sólidas (objetos reais e predeterminados) e não se pode protelar excessivamente o apaziguamento – logo, no entender de Freud, a satisfação – de tais excitações (objetivos imediatos), bem localizadas no organismo (fontes fixas), sem que o indivíduo corra risco de morte (por isto, falamos de necessidades vitais).

O mesmo, porém, não ocorre em relação à sexualidade. Suas fontes (zonas erógenas), como demonstrou Freud com a sua teoria da libido, situam-se em diversas partes do corpo [2], seus objetos são flexíveis e mutáveis[3] e seus objetivos, proteláveis.

 Por isto Freud se refere, como já foi lembrado, à “plasticidade” das pulsões sexuais. A plasticidade é de tal ordem que permite até a sublimação (mudança de objetos e objetivos pulsionais) e o amor inibido quanto à finalidade (mudança apenas de objetivo pulsional)[4]

ou seja, o prazer sexual humano, como na sublimação da química, pode mudar de estado, transformando-se de satisfação genital em prazer sociocultural.

 Freud aproxima, portanto, a sublimação química do sublime estético. Quando a libido se converte em Eros, a pulsão sexual se transforma em “pulsão social”, segundo a expressão do próprio Freud.

 Pode-se dizer, portanto, que todos os que se dedicam à criação artística, filosófica e cientifica possuem uma vida sexual intensa, pois a energia que mobiliza tais atividades é sempre a libido e o prazer alcançado desta forma é de natureza sexual, já que a sexualidade humana ultrapassa em muito o nível genital.

 “O destino pouco pode fazer contra aqueles que se dedicam à sublimação estética”, declara Freud em Mal estar na civilização. “A obra de arte é ao mesmo tempo o sintoma e a cura”, afirma, por sua vez, P. Ricoeur, como intérprete do discurso freudiano.

         Convém lembrar que esta leitura de Freud, apenas esboçada acima, foi realizada por grandes teóricos franceses, em particular J. Lacan, J. Laplanche e J. B. Pontalis e, ainda, pelo filósofo P. Ricoeur, que acabo de citar. Estes pesquisadores ressaltaram, também, a noção freudiana de “apoio”, segundo a qual a sexualidade humana se apoia na ordem vital ou biológica, para se manifestar.

 Vale dizer, ela só pode emergir a partir do que não é sexual[5]. Nada mais equivocado, portanto, do que a crítica, tantas vezes dirigida a Freud, de que a sua teoria do inconsciente reduz toda a existência humana à sexualidade (o suposto “pansexualismo” do discurso freudiano).

            Os objetos das necessidades (pulsões de auto conservação) são reais e produzem satisfação; já os objetos do desejo são irreais (imaginários e simbólicos) e provocam prazer.
 A sexualidade humana, ressalte-se, pertence às duas ordens, vale dizer, é simultaneamente necessidade e desejo. Por isto, pode ser fonte tanto de satisfação como de prazer. Convém mencionar outro ponto importante da teoria freudiana da libido: a satisfação das necessidades é claramente limitada, ou seja, ultrapassando certo nível, deixa de ser satisfação, para se tornar insatisfação (como se diz à mesa: “estou satisfeito: não aguento comer mais nada”).

Já o desejo nunca é plenamente realizado. Como mostrou Lacan, ele emerge com a perda da mãe, ou mais precisamente, no momento em que o pai, representante da Lei, porta-voz da cultura, castra a relação simbiótica da criança com a mãe – o famoso “complexo de Édipo” -, levando-a a buscar incessantemente substitutos simbólicos do objeto perdido.

 O novo objeto se torna representante (ou significante) do objeto perdido, vale dizer, significa ou simboliza este objeto.

A perda dolorosa da mãe é a condição de possibilidade de emergência da cultura, é o que faculta ao homem a inserção na ordem simbólica. O símbolo é o elemento chave da cultura.

 Esta, com efeito, pode ser definida, segundo a célebre fórmula de Cl. Lévi-Strauss, como “um conjunto de sistemas simbólicos”. O homem é este ser radicalmente inconcluso, sempre insatisfeito consigo mesmo, sempre a procura de “algo” mais.

 O fundamento da existência humana não é “logos”, como afirma a metafísica ocidental, mas “Eros”: o desejo.

 Este, no dizer de Lacan, é falta e é enquanto falta que humaniza o homem, introduzindo-o na ordem simbólica. Temos de convir com Sófocles: “De todas as coisas extraordinárias, a mais extraordinária é o homem”.

            Marx, como Freud, não concebe o fundamento da existência como “logos”. A razão não é primeira, mas segunda. De fato, ele define o homem pelo trabalho. O primeiro fato histórico, que distingue os homens dos animais, não é o fato de pensar, como sustenta a metafísica ocidental, mas o de produzir os seus próprios meios (ou instrumentos) de subsistência.

 Originariamente, o pensamento vinculava-se, portanto, à criação de instrumentos para satisfação das necessidades humanas.

 Enquanto animal, o homem é um feixe de necessidades, no núcleo das quais se encontram as necessidades biológicas: comer, dormir, reproduzir etc.

 Contudo, diferentemente dos animais, o homem não satisfaz suas necessidades diretamente, mas pela mediação de instrumentos[6].
Não nos alimentamos pura e simplesmente, como os animais, mas utilizamos talheres e vasilhas para nos nutrirmos e, a certo momento de nossa história, inventamos o fogo para transformar o cru em cozido.
Mesmo para satisfazer a necessidade de dormir utilizamos instrumentos, como, por exemplo, pijama, rede, cama, ar refrigerado, sem falar do quarto (ou do recinto). Marx, como se vê, enraíza a razão na ação (práxis).

 Contudo, ele não distingue, como Freud, a ordem vital (necessidades biológicas) da ordem sexual (desejo). Embora seu conceito de necessidade seja, como insiste Agnes Heller no seu ensaio sobre o assunto, extremamente sofisticado, Marx não diferencia desejo e necessidade, prazer e satisfação.

Esta distinção, ao que parece, pode enriquecer consideravelmente o discurso marxista, assim como os temas acima mencionados e outros deste discurso, em particular a teoria marxista da ideologia, podem contribuir para um melhor entendimento do freudismo.

 Quando, por exemplo, o fundador da psicanálise se refere em Mal-estar na civilização à “natural aversão do homem pelo trabalho” e, em outro momento deste mesmo ensaio, lamenta que a sublimação seja um recurso disponível apenas para uma minoria, seus discípulos, instruídos pelos ensinamentos de Marx, devem denunciar os elementos ideológicos de tais afirmações.

            Voltemos à teoria freudiana, enquanto apta a complementar o enfoque marxista do homem. O apoio da ordem sexual na ordem vital, estudado por Freud na sua primeira classificação das pulsões, permite entender a projeção permanente, peculiar à condição humana, do imaginário e do simbólico sobre a satisfação das necessidades.

 Enquanto animais, alimentamo-nos; enquanto seres humanos, porém, complexificamos as nossas refeições com inúmeros rituais, alguns extremamente requintados, como, por exemplo, o banquete.

 O mesmo se pode dizer da satisfação de todas as outras necessidades (vestir, dormir, tomar banho etc.). Articulamos a satisfação das necessidades com o prazer alcançado pela realização de nossos desejos.
Não é a mesma coisa tomar um vinho de safra especial num copo de plástico – que horror! – ou numa taça de cristal – que maravilha!

 A satisfação é a mesma, mas o prazer muda completamente num caso e noutro. Na verdade, não é qualquer instrumento que nos interessa, mas aquele que além de útil possui uma forma esteticamente agradável, ou seja, que corresponda a nossos desejos.

 Daí não ser possível ao homem, na satisfação de suas necessidades, privar-se de certo luxo e sofisticação, sem correr o risco de se desumanizar.

Nem todo luxo é lixo, embora isto ocorra frequentemente. A ironia do Joãozinho 30 a certa militância de esquerda, não muito esclarecida, é perfeitamente legítima: “Quem gosta de pobreza é intelectual; pobre gosta de luxo”. 

Pobre e todo ser humano que assume, sem culpa de classe injustificada, sua humanidade e seu erotismo criador (no sentido amplo que Freud atribuiu ao termo “Eros”). Destas duas ordens – biológica e sexual –, sem dúvida é a segunda que distingue os homens dos animais. “Viver não é preciso, navegar é preciso”.

          Marx, pensador pelo qual tenho grande admiração, não distingue as duas ordens. Daí a conveniência de completar a sua teoria da necessidade – e o seu importantíssimo e atualíssimo conceito de alienação, ligado a esta teoria, além da sua noção de ideologia, já mencionada – com a teoria freudiana do desejo. 

 Afinal, “nem só de pão vive o homem”.


[1] Freud distingue instinto (Instinkt) de pulsão (Trieb).  O primeiro termo designa uma herança genética que permite a uma espécie animal adaptar-se rígida e mecanicamente ao meio físico e natural. 

Trieb , ao contrário, não se refere a um comportamento preestabelecido, específico e hereditário. Freud emprega este termo, sobretudo, para caracterizar a grande plasticidade da sexualidade humana, o que a diferencia essencialmente da sexualidade animal.

 Enquanto esta é instintiva e, por isto mesmo, rígida, aquela muda, como estamos analisando, de fontes, objetos e objetivos ao longo da nossa história pessoal. A libido percorre todo o nosso corpo (fases oral, anal, fálica) até alcançar, apenas na puberdade, a fase genital.
[2] Freud emprega, inclusive, a expressão “corpo erógeno”, já que o corpo inteiro pode ser fonte de prazer sexual.

[3] O primeiro objeto de amor – ou objeto libidinal – de todo ser humano é a própria mãe, que é abandonado na situação edipiana, pela interferência paterna. A escolha definitiva de objeto (por exemplo, uma escolha heterossexual ou homossexual) só ocorre na puberdade, ou melhor, na fase genital.

[4] É com esta noção que Freud explica a ternura e os vínculos sociais. Nas relações familiares, por exemplo, o objeto da libido é o mesmo (mãe, pai ou irmãos), mas o objetivo sexual é “freado” e se transforma em ternura ou amizade.

 É assim que Freud explica, também, a formação dos vínculos sociais necessários à transformação da natureza pelo trabalho.  Curiosamente, ele apresenta como modelo do amor inibido quanto ao objetivo a figura de Francisco de Assis.

[5] Daí J. Laplanche afirmar que “a pulsão sexual é estruturalmente perversa”, ou seja, desviante em relação à ordem vital ou biológica.
[6] É o que mostra, de modo admirável, o início do filme “2001, uma odisseia no espaço” de Stanley Kubrick.

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